quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Na terra de Khadafi
A Líbia não é exatamente um lugar completamente desconhecido para a maioria dos brasileiros. Em algum momento, você já deve ter ouvido falar neste país. Mas quando se trata de ligar alguma informação da nossa memória a esta nação, muitas vezes impera a confusão. Primeiro, é comum a troca recorrente da Líbia pelo Líbano, este último país bem mais presente no imaginário brasileiro, por conta dos muitos imigrantes que vivem na região Sudeste e da comida sírio-libanesa que convencionamos chamar (generalizando) de árabe. Há também um questionamento recorrente: a Líbia está na África ou no Oriente Médio? Pode conferir no mapa, mesmo fazendo parte do mundo árabe, o país que foi colonizado pelos romanos, fenícios, turcos e - por fim - italianos, até o período da Segunda Guerra Mundial, localiza-se no Norte da África, logo ali entre a Tunísia e o Egito. Por fim, há o polêmico Muammar al-Khadafi, governante do país há nada menos que 40 anos. O homem que comanda este país árabe sob uma forte ditadura e implantou um sistema que se diz socialista, é popularíssimo entre os seus e habita as páginas dos jornais de todo o mundo com acusações de cunho terrorista. O mais curioso é que, mesmo com toda (má) fama de Khadafi, muitos não o ligam diretamente a Libia.
Envolto em todo esse misterio, não deixa de ser um prazer desvendar a Líbia, um país que, só por pertencer ao mundo árabe, já desperta as mais diferentes sensações. Ver todas as mulheres com as cabeças cobertas, mesmo que poucas usem a burca completa, perceber como ainda há segregação pesada entre mulheres e homens, entender o papel primordial da religião na vida daquelas pessoas - todos esses são pequenos desafios para o visitante. Imagine então para os estrangeiros que lá vivem e trabalham, como é o caso, por exemplo, dos engenheiros e administradores brasileiros que trabalham na ampliação do Aeroporto Internacional de Trípoli e na construção do Terceiro Anel Viário da mesma cidade. Mesmo sendo um local com amplas oportunidades - que ainda está no início do processo de reconstrução da infraestrutura, após o embargo de anos imposto pelos Estados Unidos - a Líbia é um país que exige amplo desprendimento por parte dos ocidentais.
A primeira questão básica é a proibição absoluta do consumo de qualquer tipo de bebida alcoólica. Se na conexão em Londres, vindo do Brasil, você comprar uma birita qualquer, pode se preparar para entregá-la de mãos beijadas às autoridades líbias. E não há muita chance de escapar, afinal sua bagagem passa por incríveis quatro equipamentos de raio-x. Se quiser beber, terá mesmo é que se entregar ao mercado negro, com álcool vendido a preço de ouro. Outro fator determinante é a diferença conceitual do lazer. Para o líbio, lazer é fumar imensos narguilés e comer. Algo que não é exatamente ruim, mas que deixa de ser interessante quando se é praticamente a única opção. Na Líbia, não há cinemas, teatros, casas de shows e boates - ao menos nos moldes que nós ocidentais estamos acostumados. Para se ter uma idéia, o fim de semana se resume à sexta; sábado e domingo são dias de branco, labuta normal. Tanto que o brasileiro que lá vive costuma dizer que a sexta de manhã é o seu sabado e a sexta de tarde é o domingo... Mas não se engane: mesmo com uma única folga oficial por semana, o líbio põe o trabalho como quinta prioridade, abaixo da religião, família, amigos e lazer, não hesitando em faltar por qualquer motivo. A mulher ocidental também pode sofrer na Libia, basta experimentar sair sem véu nas ruas e perceber os olhares lascivos dos árabes.
Pois, mas ainda que existam todas essas restrições - ou, melhor dizendo, diferenças culturais - a Líbia também oferece diversos encantos. Trípoli é uma cidade à beira-mar com uma orla bem cuidada e muito movimento nas ruas. O povo é receptivo ao brasileiro, muito por conta do futebol. A Medina, centro histórico e comercial da cidade, é imponente e traz vibrantes ruelas, que guardam muitos segredos e mercadorias baratas em ouro, prata e panos coloridos. Outra notável característica líbia é a inexistência da miséria, algo que a diferencia do resto da África. Claro, há pobres, mas longe de serem miseráveis. Talvez por esse motivo, a violência é mínima, não há notícias de assaltos e assassinatos. Um oásis para quem vive nas grandes cidades brasileiras.
Povo religioso, o árabe faz as cinco rezas diárias, como manda o Alcorão. Nas ruas da Medina, é impressionante o chamado dos alto-falantes das mesquitas, com uma ladainha exótica e eloquente. Neste momento, o árabe pára o que está fazendo, se limpa por completo e se apresenta puro para reverenciar a Alá. Na semana em que estive na Líbia, finalizavam-se os preparativos para o Ramadã, que começou no dia 21 de agosto. O Ramadã nada mais é que uma das mais importantes manifestações religiosas do mundo islâmico. Ao nascer do sol, o muçulmano não come, não bebe, não transa e nem fuma. Os mais radicais, nem escovam os dentes, para não correr o risco de engolir água. Quando o sol se põe, o atraso é tirado e eles comem e fumam por toda a noite. O jejum é completo por um longo mês, que este ano se mostrou ainda mais complicado, por ter caído em pleno Verão. Imaginem o que é sentir sede por um dia inteiro, num calor de 38 graus, e não beber absolutamente nada? Naturalmente, os turnos de trabalho são menores e a produtividade cai em 60%, afinal seria humanamente impossível manter a rotina. Tudo em nome da tradicão, que, na terra de Khadafi, é o que importa.
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Um comentário:
Leo,
Que fantásticas as suas impressões. A cada palavra, pude sentir cada detalhe da sua experiencia. Continue descrevendo assim, minunciosamente, as suas aventuras odebrechtianas, para que a gente também possa usufruir um pouquinho de cultura. Beijo! Mila
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