quarta-feira, 30 de setembro de 2009
O mistério do corpo
De um lado, o colorido extravagante e o absurdo nas palavras e ações dos filmes de Pedro Almodóvar. Do outro, a singeleza e os gestos contidos que povoam uma porção da cinematografia japonesa. Filmes distintos em quase tudo,"Fale com Ela" (2002), do fantástico diretor espanhol, e "A Partida" (2008), que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e é dirigido por Yojiro Takita, se cruzam no apuro em que seus personagens cuidam de corpos: mortos ou quase-mortos. Explico melhor: em "Fale com Ela", o esquisito enfermeiro Benigno Martín (Javier Cámara) zela pelo corpo em coma de uma bela bailarina e por ela se apaixona. Tudo, claro, com a carga dramática e o estoque de reviravoltas que se tem direito, quando se trata de Almodóvar. Em "A Partida", o jovem violoncelista Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki), perdido na busca por respostas que não sabe onde estão, começa a encontrar algumas pistas ao trabalhar como agente de funerária. Em uma cultura que acha infame o trabalho de tocar corpos mortos, mesmo considerando o ato de preparar os mortos como um ritual, Kobayashi exprime uma delicadeza notável no seu ofício, em cenas belíssimas, mesmo que um tanto longas. Mesmo aqueles que o consideram um ser estranho com uma função pouco nobre, incluindo sua noiva, passam a entender a dignidade do trabalho de Kobayashi ao perceber o respeito e a dedicação que ele entrega aos entes queridos dos outros. As cenas ritualísticas e a maneira como o protagonista mergulha gradativamente no seu trabalho emocionam nos singelos detalhes. Se por vezes atua de um modo um tanto caricato, na maior parte das vezes o japonês Masahiro Motoki consegue transmitir muito nos gestos e olhares. Entendemos a angústia no seu peito desde o início do filme e esperamos pela inevitável redenção, que acaba acontecendo em uma cena diretamente ligada ao seu lidar diário com defuntos.
"Fale com Ela", que revi essa semana, tem uma história mais forte, muito por conta do talento nato de Almodóvar como roteirista. Os diálogos ferinos e a chocante relação do enfermeiro Benigno com a bailarina Alicia (Leonor Watling) se destacam em uma narrativa que tem cenas sublimes. Duas delas estão diretamente ligadas aos brasileiros: a da toureira Lydia Gonzáles (Rosario Flores) em ação, ao som de uma arrepiante canção de Elis Regina, e a de Caetano Veloso arrancando lágrimas do apaixonado Marco Zuluaga (Darío Grandinetti). Nas passagens de dança, protagonizadas pela recém-falecida Pina Bausch, Almodóvar consegue ainda transmitir muito da emoção de seus personagens. Um filme lírico e forte, daqueles ideiais para ver e rever.
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3 comentários:
Léo!
Antes de mais nada, obrigada pelos parabéns no blog do Tarcísio! Menino, não conhecia seu blog, é massa!
Gostei muito de fale com ela, vi duas vezes; ótima a análise junto com A Partida, que ainda não consegui assistir; vou ver assim que tiver um tempinho.
Beijos,
Mila
léo,
tô linkando o vestígios urbanos no on the rocks.
abs
É interessante observar no Fale com Ela as referências que Almodóvar "distribui" ao longo do filme de influências importantes em sua carreira: música brasileira e o trabalho de Pina Bauch, como você mencionou; Alfred Hitchcock, com uma menção ao filme Janela Indiscreta - cenas em que Bebigno fica observando pela janela a bailarina Alicia -; e cinema mudo, quando o diretor, para demonstrar que Benigno havia violado Alicia, mostrou em preto e branco, com apenas uma trilha sonora, um homem, em tamanho reduzidíssimo, mergulhando na atriz Paz Vega, em tamanho natural. Demais!!!!
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