segunda-feira, 18 de abril de 2011
Rock na veia
A safra das biografias musicais é das melhores. Claro, ainda teremos que conviver com bombas como o livro sobre a vida de Justin Bieber - cujo resumo caberia numa (medíocre) redação do Ensino Médio, mas há opções interessantíssimas para quem gosta da boa música. No Brasil, o destaque é o verborragico Lobão, que em alguns momentos é o chato de plantão, mas certamente tem muita história para contar. No exterior, tem Keith Richards, Ozzy Osbourne e Patti Smith. Todos sobreviventes do rock, verdadeiras lendas. O primeiro da fila de leitura foi Keith Richards. A autobiografia "Vida", elaborada com o apoio do escritor James Fox, é um divertido extrato de uma das trajetórias mais loucas do rock. Ao contrário do que se imagina, Keith lembra sim de muita coisa. Quando não se lembra, põe amigos e parentes para falar por ele, num recurso que dá dinâmica à narrativa.
Keith é a figura mais interessante dos Stones. É um daqueles rockstars que personifica o rock'n'roll como deve ser: sujo, sacana e intenso. Não dava para esperar uma biografia limpinha desse rockstar. "Vida" é verdadeira e recheada de drogas, mulheres e de opiniões pouco convencionais. Carregada de ironia, tem passagens hilárias, observações inéditas sobre alguns dos astros que transitaram ao redor do guitarrista e trechos sobre a música dos Stones e a maneira de Keith tocar. Algumas (poucas) passagens exageram no tom técnico, nada que atrapalhe a narrativa fluída e envolvente.
Como não poderia deixar de ser, a louca ciranda das drogas está no centro das atenções. Ele narra o seu movimento inicial, o mergulho no mundo dos ácidos e cocaína até chegar na temida heroína. Mesmo não fazendo apologia às drogas, Keith desenvolve quase um manual de uso, classificando o melhor tipo de heroína, o que se deve evitar ao tomar a droga e qual a sensação ao experimentá-la. Não tem receio de contar os detalhes mais tenebrosos, o que incluir a agoniante descrição das crises de absistência. Em uma passagem, ele chega a dizer que é melhor ter a perna explodida numa trincheira ou morrer de fome do que passar por uma crise desse tipo. E assusta ao dizer que sua ex-mulher Anita Pallenberg conseguia ser pior que ele - o que, diga-se de passagem, levou a separação dos dois. Ele chega a dizer que tinha medo de Anita e se escondia com o filho Marlon até ela se acalmar. "Anita era como Hitler, ela queria que tudo desmoronasse junto com ela. Por mim eu ainda estaria com ela! Mas Anita jogou tudo fora. Ela agora esta bem, Tornou-se uma avó maravilhosa", completa Keith.
Mesmo não sendo nenhum santinho, Keith largou a heroína há mais de 30 anos. Não sem antes colocar a vida em risco nas mais diversas situações e ser preso durante algumas outras. Na pior fase, ficou nove dias sem dormir e levou o filho de sete anos para uma louca turnê dos Stones, colocando o menino para ser babá dele. Sempre na estrada, entupido de drogas e com os tiras no encalço. Mas não é só de loucuras que Keith fala. Em alguns momentos, ele deixa aflorar uma rara sensibilidade. Defende o amor mais responsável e diz que nunca gostou das transas loucas com groupies. Ele gostava mesmo era das "groupies enfermeiras", aquelas que só tomavam conta dele. Não dá para negar que essa figura romântica não combina tanto com Keith, mas ele até que convence o leitor no discurso.
Em um dos momentos mais emocionantes do livro, Keith fala da morte do filho, Tara, de 2 meses. Ele não se perdoa por ter saído em turnê e deixado o filho recém-nascido para trás. Foi um mal súbito, mas Keith afirma que "agora existe um espaço permanentemente gelado dentro de mim (...) Hoje em dia isso me atinge aproximadamente uma vez por semana". Morte, aliás, é um assunto recorrente no livro. Muitos amigos de Keith se foram, boa parte deles por conta das drogas. Ele fala com carinho de Gram Parsons, James Belushi (segundo ele, uma experiência extrema até para os padrões dele) e Ian Stewart. A morte deste último, que recebe de Keith o crédito como o cara que fez os Stones de fato surgir, foi o maior golpe para Keith, só perdendo para a morte do seu próprio filho.
Quando fala de amizade, Keith faz questão de dar crédito aos que mais o influenciaram, conta histórias divertidas de seus amigos menos conhecidos e foca naqueles que foram os companheiros dos Stones. Além do já citado Ian Stewart, ele tece os mais justos elogios a Charlie Watts, Ron Wood (que foi levado aos Stones por Keith) e Mick Taylor. Brian Jones aparece mais como uma figura asquerosa, que maltratava os amigos e a namorada Anita Pallenberg. Ela mesma, que depois foi roubada por Keith, num gesto pouco nobre. Claro que Keith relativiza os defeitos de Brian e mostra alguma afetividade, mas a imagem final não é nem um pouco favorável. Quando se trata de Mick Jagger, o buraco é mais embaixo. Num típico morde e assopra, Keith coloca o amigo-irmão nos céus, para em seguida derrubá-lo com os mais terríveis xingamentos. A relação dos dois piorou drasticamente quando Keith largou as drogas e resolveu se envolver mais detalhadamente nos negócios da banda. Nesse ponto, Jagger já se achava o dono dos Stones e estava cada vez mais distante. Vestindo a carapuça de superstar, o vocalista se envolveu com a alta sociedade, passou a exigir algo mais que os outros integrantes e deixou as amizades em segundo plano. Aborrecido, Keith afirma: "Deve ter uns 20 anos que não vou no camarim dele. Às vezes sinto falta do meu amigo. Onde diabos ele foi? Se a merda voar no ventilador, ele estara lá. Mas Mick com o passar dos anos foi se isolando mais e mais". Os piores momentos ocorreram quando Mick Jagger resolveu se dedicar a carreira solo, culminando com a decisão de não sair em turnê com os Stones em 1985. Bradando por todos os cantos que os Stones era uma pedra amarrada ao pescoço dele, Jagger se indispôs com toda a banda.
"Vida" é, pois, um livro humano, longe do politicamente correto, que conta com sagacidade a trajetória dos Rolling Stones, em particular desse inusitado rockstar, desde o nascimento até os dias de hoje. Obrigatório para quem curte o bom e velho rock´n´roll e mais ainda para quem é fã desta que é uma das maiores bandas da história. Ao final da leitura, uma das impressões que fica é que todos os roqueiros da atualidade são animadores de festinha de criança. E que poucos podem com o velho Keith Richards.
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