
No dia 31, minha avó materna completa um ano de falecida. Deu um jeito de ir embora justamente no último dia do ano, quando todos os filhos e muitos dos netos estavam em Salvador. Até hoje não sai de minha cabeça uma das cenas mais tristes - porém de uma beleza indescritível - que presenciei: pelo menos uns 30 dos seus descendentes, ao seu redor, ouvindo seu último suspiro. Do jeito que ela queria, em casa, com a família unida. Fechou assim um ano triste em que dois dos seus genros já tinham ido embora.
Se a falta que ela faz é inestimável, não há como negar que viveu os seus 97 anos com intensidade única. Verdadeira matrona, quase uma Corleone de saias, minha avó sempre foi o eixo central de uma grande família - com 10 filhos, quase 30 netos e outro generoso punhado de bisnetos. São muitas as histórias protagonizados por ela, que carregava como marcas registradas a personalidade forte, a dedicação extrema aos seus entes queridos e o poder de hipnotizar todos a sua volta. Com voz forte até seus derradeiros anos, queria saber de tudo e de todos, vibrava com as conquistas e sabia dar as broncas necessárias.
Casou tarde e teve o primeiro filho apenas aos 27 anos, numa época em que com essa idade ficava-se era para a titia. E era solteira por escolha, costumava dizer que meu avô muito insistiu para que ela casasse. Com os primeiros dois filhos, uma garota e um garoto, deu por encerrada a conta, sem imaginar que outros oito viriam pela frente. O destino fez com que ela aceitasse a posição de líder de uma grande família, o seu verdadeiro dom.
Só uma coisa era capaz de tirar minha avó do sério. Uma história da juventude, que fugiu ao seu controle e era assunto tabu. Ela foi escolhida como a primeira Miss Bahia, em uma eleição que antigamente era feita pelo maior jornal da cidade, sem candidatura prévia. Sem saída, foi praticamente obrigada a aceitar o posto e ainda teve que desfilar em carro aberto no Rio de Janeiro, no concurso de Miss Brasil. A beleza se manteve até os seus últimos dias, assim como a má vontade em falar do assunto.
Guardo na memória felizes encontros de domingo em sua casa, quando os filhos e netos se reuniam para homenageá-la. Dia de muita conversa, comes e bebes, a confusão básica de uma família que sempre soube viver bem. Ao menor atraso de algum dos seus filhos, lá estava ela puxando a orelha. Os eventuais almoços nos dias de semana, com a sopa de massinha, a comida italiana e o sorvete caseiro para encerrar, deixam saudade. E as temporadas no sítio Portão, casarão antigo que muitas festas presenciou e que perdeu muito do sentido com a passagem de minha avó. Entre as muitas cenas em Portão, uma era clássica: ao pedir uma caipiroska para relaxar, tinha a sua bebida favorita intercedida pelas filhas, que pediam para colocarem um pouco menos de álcool. Não se dava por vencida, e devolvia a bebida dizendo: "Essa está muito inocente, façam o favor de me trazer outra!"
Nesse final de ano, minha avó já fez muita falta no Natal, quando seus netos - marmanjos ou não - se reuniam para cantar no clássico coral. Certamente, estava de olho na festa de onde quer que ela esteja. E feliz, por ver a família reunida, como ela sempre quis.